Produz-se
conhecimento nas licenciaturas?
Fazer esta pergunta significa questionar
o estatuto da instituição em que desenvolvemos nossa atuação profissional e
política. Diante da expansão do ensino superior público e do movimento de
interiorização das universidades brasileiras, dois processos que vem se
desenrolando há mais de uma década, é chegado o momento de indagar sobre as
contribuições que temos proporcionado, seus beneficiários, como resposta a
essas conquistas sociais.
Acreditamos que há motivos para
preocupação. Já é possível reconhecer os traços de uma ideologia que aponta
para a redução das licenciaturas a um espaço menor, dedicado à divulgação de um
conhecimento que é destinado a regular a ação do professor e não à garantia de
seu direito de produzir o conhecimento que sustenta seu trabalho. Nessa
perspectiva, a formação docente é pensada como um repasse de informações, uma
forma de acesso ao que se apresenta como sendo as últimas tendências no ensino,
supostamente já bem sucedidas em algum lugar.
As licenciaturas não precisam produzir
conhecimento para os que pensam dessa forma. O conhecimento já foi todo
produzido em centros de excelência, normalmente universidades brasileiras
localizadas em polos econômicos consolidados, por um número reduzido de pessoas
cujos nomes acabam se tornando sinônimos de certos conceitos ou formas de
trabalho. Aos cursos “menores” cabe apenas tomar pé do que se está dizendo nas
“grandes universidades”. Em geral, no entanto, não é sequer nas universidades
brasileiras de prestígio que o conhecimento se produz, porque o que se difunde
a partir daí pode não passar de uma proposta de trabalho produzida no
estrangeiro, rebatizada com um nome que garante sua imediata associação, em
território nacional, a um grupo e à “linha de trabalho” propalada por esse
grupo. Para garantir que a linha de trabalho seja imediatamente reconhecível, é
comum batizá-la com um neologismo, argumentando que a criação do termo seria
necessária por não haver uma palavra adequada na língua; outra técnica consiste
em nomear um conceito-chave com uma expressão que se confunde com um termo de
uso comum, de forma que, sempre que se use esse termo em seu sentido comum,
pareça que se está fazendo uma referência ao conceito. Nessa perspectiva, mesmo
as universidades prestigiadas, que ditam as teorias que orientarão o trabalho
das universidades menos visível, são elas mesmas subsidiárias de outros
centros, em um grau mais distantes dos que se formam sob seus auspícios.
Buscando um contraponto a essas
tendências, os organizadores do IV SISEL e do VII SEALL convocam os
participantes de ambos os eventos a refletir sobre o que significa estar
inserido em uma licenciatura no tempo que vivemos, seja como estudantes, seja
como docentes, seja ainda como egressos sempre convocados a retornar pelas
políticas remissivas de formação continuada. Contra as perspectivas que defendem
a licenciatura como um espaço subsidiário dentro da universidade, onde se
trabalha mais e se produz menos, os organizadores propõem que se recoloque o
problema do que é formar um professor a partir de dois deslocamentos:
1) Expandir a noção de aula, assumindo
que a escrita, a pesquisa e o trabalho intelectual são parte do trabalho diário
do professor e não ações sazonais que se realizam “sobre” ou “após” o ensino.
2) Assumir a necessidade de que a
formação de professores seja pensada pelo prisma da relação entre o professor e
os conhecimentos, sendo estes não apenas os de natureza didático-metodológica,
mas também os de sua área específica, que participam do seu trabalho como
objetos ou temas de ensino.
O primeiro deslocamento exige enfrentar a
tendência que define a atuação do professor como sendo exclusivamente didática,
considerando que o professor só trabalha quando está em atividade presencial
perante os alunos. Nessa linha de pensamento, colocam-se como questões centrais
problemas de ordem metodológica, como a organização de tarefas e a realização
de procedimentos didáticos. Os conteúdos do ensino não são problematizados,
pois se parte do pressuposto de que quem se encarrega deles são os
especialistas; ao professor caberia quando muito didatizá-los. As condições de
trabalho do professor, quando levadas em conta, são vistas como obstáculo a
ultrapassar ou potencial a explorar; não se considera que sejam também produto
do próprio trabalho do professor.
O segundo deslocamento exige enfrentar a
tendência que define o professor como pesquisador, dando a impressão de que se
defende um profissional mais autônomo, mas ao mesmo tempo acompla sua pesquisa
à própria prática e à reprodução dos conhecimentos que visam regular sua ação.
Não só o campo de pesquisa do professor é mais restrito que o do restante dos
universitários (que podem pesquisar linguística, literatura...), como o fruto
de sua pesquisa não é visto como acréscimo ao conhecimento disponível; o único
resultado que se espera de sua “pesquisa” é a adesão a uma proposta que já lhe
é apresentada como melhor do que o que ele faz. A “pesquisa” do professor o
constitui como sempre desatualizado e subordinado aos conteúdos de ensino
ditados pelos autores do ensino que pratica.
Diante disso, pergunta-se ainda uma vez –
produz-se conhecimento nas licenciaturas? Responder a essa pergunta exige tomar
o próprio trabalho da universidade como objeto de pesquisa. Romper com as
tendências que apontam para uma resposta negativa exige, por sua vez, assumir
coletivamente a responsabilidade de formar professores a partir de um
compromisso com a livre reflexão, com o trabalho intelectual autônomo e com a
produção de conhecimento. Estamos dispostos a empreender um trabalho dessa
natureza, mesmo quando se sabe que a aquisição do diploma ou a permanência no
emprego podem ser garantidas por caminhos que exigem um menor esforço pessoal?
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